domingo, 13 de maio de 2018

LIBERDADE É CONSTRUÇÃO. HISTÓRIA NO DIA DAS MÃES

Só bem mais tarde é conquista, a ser defendida quando for conseguida. Por ora, comecemos por conhecer a natureza da opressão. Artigo publicado no jornal GGN


Reescrever a história dos mortos: doze anos dos Crimes de Maio, por Maria Teresa Mhereb

do Blog da Boitempo
por Maria Teresa Mhereb
Epopeia dos vencidos: os fatos… tal qual eles propriamente são?
Maio de 2006. Último ano do primeiro governo Lula; primeiros meses de Cláudio Lembo (antigo PFL) como governador do Estado de São Paulo, cargo que assumiu após a saída de Geraldo Alckmin (PSDB) para concorrer à presidência da república pela primeira vez (disputa que seria perdida para Lula reeleito).
Uma onda de ataques contra as forças de segurança tomou o Estado de São Paulo, sobretudo sua capital. Debitados ao PCC (Primeiro Comando da Capital), os ataques seriam, segundo a grande imprensa brasileira, uma reação à transferência de presos que planejariam rebeliões para o dia das mães. Durante uma semana, foram registradas revoltas em dezenas de presídios e diversos atentados a bases policiais, centenas de carros e ônibus foram queimados. Temendo um suposto toque de recolher acionado pelo PCC (jamais confirmado pela própria organização, mas amplamente divulgado pelos meios de comunicação), boa parte dos estabelecimentos comerciais, escolas e universidades foi fechada.
O medo espalhou-se e, junto a ele, o caos assolou as cidades paulistas. Era preciso dar uma resposta à altura da violência posta em prática pelo PCC e retomar a ordem. Para isso, Lula ofereceu a Lembo a ajuda das Forças Armadas Federais1, mas as forças policiais paulistas, dada sua larga competência no assunto, conseguiram fazê-lo sozinhas.
O fim dos ataques ocorreu, curiosamente, um dia após o encontro entre o líder do PCC (Marcola), sua advogada e um policial militar. Imediatamente, a imprensa levantou a hipótese de que teria havido uma negociação entre o PCC e o governo do Estado de São Paulo2. Embora o encontro tenha sido admitido pelo delegado-geral da Polícia Civil, o acordo, no entanto, foi negado, e o delegado atribuiu a redução dos ataques ao sucesso da repressão policial3: enquanto os diversos ataques do PCC vitimaram cerca 60 agentes públicos de segurança, a própria polícia paulista matou, entre os dias 12 e 20 de maio, pelo menos 500 civis4.
 Cinco anos depois, um estudo da ONG Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos de Harvard concluiu que os ataques não teriam ocorrido em função da transferência e isolamento de presos, mas seriam uma revanche do PCC contra o sequestro e o pedido de resgate do enteado de Marcola: o sequestro teria sido organizado por um investigador de polícia5(!). Os indícios apontariam também para a participação de grupos de extermínio da polícia na execução de parte das vítimas, cujo perfil seguiu um padrão bem definido: a maioria delas era, evidentemente, negra, pobre e moradora das periferias.
Com a história oficial, elaborada por Estado, grande imprensa e forças policiais, os trágicos eventos descritos ficaram conhecidos – e são ainda lembrados – como “os ataques do PCC”, que precisaram ser combatidos com pulso firme pelo Estado. A liquidação de centenas de seus supostos membros é, segundo essa mesma narrativa, uma das provas de que o combate ao crime foi bem sucedido naquela ocasião.
Mas uma versão definitiva dessa história, uma epopeia que tem vencidos de ambos os lados (e em que apenas o terror do Estado foi vencedor), está longe de ser escrita. Disputar a história, reescrevê-la, é ainda uma tarefa a cumprir para as centenas de suas vítimas diretas ou indiretas.
Mães de Maio: narrativas em disputa
Um mês após o massacre de maio de 2006, as investigações sequer haviam começado. Processos que chegaram a ser abertos foram arquivados mais tarde. Seguindo um método bastante tradicional aplicado pela Justiça brasileira (e aprovado por inúmeros setores da sociedade civil), muitas das vítimas foram criminalizadas pelos investigadores: visando a legitimar a ação policial, foram acusadas de serem usuárias ou narcotraficantes, de terem se envolvido em roubos ou assaltos. Não raro, também, as próprias mães das vítimas foram acusadas de herdarem pontos de vendas de drogas que seriam de seus filhos.
Doze anos se passaram. Nenhuma surpresa.
Mas o descaso da Justiça na investigação das centenas de assassinatos não calou todos os que sobreviveram à chacina: as mães e os familiares de muitas dessas vítimas do terrorismo de Estado uniram-se em um movimento chamado Mães de Maio6. Nascido em Santos, litoral de São Paulo, o grupo é coordenado pela mãe de uma das vítimas, Débora Maria da Silva, e conta com dezenas de membros, a maior parte mulheres, que estão juntas em reuniões, intervenções e atos organizados, encontros nos quais podem não apenas fortalecer-se emocionalmente, como também levar sua dor para o debate e o enfrentamento políticos. Entre suas pautas de luta estão a memória, a verdade e a justiça com relação ao massacre, a desmilitarização da polícia e o combate à violência estatal. Com efeito, como se sabe, a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, e a cada quatro pessoas mortas pela polícia paulista, três são negras7.
Se a dolorosa experiência comum dessas mulheres com o terrorismo de Estado impulsionou sua aproximação, ela também faz com que sua luta não seja apenas por seus filhos, mas por todos aqueles que são vítimas em potencial da tragédia social que se repõe cada vez que uma Marielle, que uma liderança indígena, campesina ou quilombola é executada no país. Trata-se, em última instância, de um movimento cujo objetivo é romper a continuidade de uma história de violência que se repete há centenas de anos no Brasil. Por isso, essas Mães assumem, e têm clareza disso, a herança de lutas ancestrais, que remetem ao sequestro e escravidão dos negros africanos, ao genocídio indígena brasileiro e à forçosa migração nordestina para o Sudeste em busca de sobrevivência.
Walter Benjamin escrevia em suas Teses “Sobre o conceito de história” que “o dom de atear ao passado a centelha da esperança é privilégio do historiador que está convencido de que nem mesmo os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”8. As Mães de Maio conhecem muito bem a verdade contida nessas palavras, e atuam como verdadeiras historiadoras do passado e do presente dos vencidos, numa tentativa constante de reescrever a história de seus mortos, para que eles não sejam lembrados apenas segundo o relato policial, para devolver a voz que lhes foi roubada e romper o silêncio que lhes foi imposto. Em suma, essas Mães disputam a história e, para isso, sabem que é preciso também renomear os fatos: daí seu trabalho para que os Crimes de Maio sejam re-conhecidos – e não apenas eventualmente lembrados, como acontece há doze anos, como “os ataques do PCC”, que permitem encerrar o passado, bem ao gosto da historiografia feita pelas classes dominantes.
Movimento social de combate aos crimes do Estado, as Mães de Maio tornaram-se, pela radicalidade política e impacto de sua luta, uma importante referência para inúmeras famílias que, todos os anos, fazem, elas também, sua marcha fúnebre, e vêm atuando junto a diversos outros movimentos e instituições engajadas na mesma luta. No Rio de Janeiro, as Mães de Maio trabalham ao lado da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, das Mães de Manguinhos, de Fóruns de Juventude. Em São Paulo, junto às Mães da Zona Sul, às Mães de Osasco, às Mães Mogianas, à Pastoral Carcerária, à Associação Familiar de Presos e Presas (Amparar), ao Coletivo Fala Guerreira e à Ponte Jornalismo.
No dia 11 de março de 2017, as Mães de Maio uniram-se também às Mães em Luto da Zona Leste, da cidade de São Paulo, para, juntas, organizarem um calendário de luta contra os assassinatos que vinham ocorrendo nessa região da cidade – e cujos indícios apontam mais uma vez para a ação policial. A entrevista abaixo, feita com Débora Maria da Silva nesse encontro, que aconteceu no Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (Zona Leste de São Paulo), foi realizada a pedido do site franco-brasileiro Autres Brésils. Ela deveria compor um dossiê sobre o fim do ciclo dos governos de esquerda na América Latina; o dossiê, no entanto, nunca foi publicado. Nos doze anos de tão dramática efeméride, esta é uma homenagem à força e à luta incansável dessas mulheres.
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Os Crimes de Maio ocorreram em maio de 2006 durante o primeiro Governo Lula. Como Lula se posicionou em relação a eles naquele momento?
Sim, os Crimes de Maio ocorreram durante o primeiro Governo Lula, e ele e seu governo sequer manifestaram pêsames ou sentimentos às mais de 500 famílias de vítimas fatais, naquele que foi o maior massacre estatal da história contemporânea. Nem se deram ao trabalho. E nós sabemos que ao longo de todos os governos Lula e Dilma Rousseff as políticas federais para a área da chamada “segurança pública”, na prática, apenas jogaram mais recursos e força à lógica prática de fortalecimento do sistema penal, do encarceramento, da militarização e, portanto do genocídio. Basta lembrarmos que a política das UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, cujos efeitos nossos irmãos cariocas sentem até hoje, foi uma das grandes vitrines de políticas articuladas entre a União e os Estados. Vimos também a expansão das prisões e o aumento, ano após ano, do número de execuções de jovens pobres, na maioria negros.
Vocês tiveram algum contato com a ex-presidenta Dilma Rousseff?
Com a ex-presidenta Dilma Rousseff nós nunca nos reunimos pessoalmente. Ela também nunca se deu a esse “trabalho”. Nós enviamos uma Carta à presidenta em meados de 2012, quando já sentíamos os efeitos e alertávamos sobre o que, de fato, viria a acontecer, como veio: os crimes de junho, julho e todo o segundo semestre de 2012 aqui em São Paulo. Chacinas em série que vitimaram centenas de nossos meninos e meninas por aqui. Nós enviamos publicamente a Carta no meio do ano, e só fomos recebidos mesmo – e isso não por ela pessoalmente, mas pela equipe do Sr. Gilberto Carvalho (então Ministro da Secretaria Geral da Previdência) em outubro daquele ano. Pouco ou quase nada saiu de efeito prático das dezenas de propostas que nós preparamos e levamos para lá, dentre as quais se destaca a “Agenda Nacional Pelo Desencarceramento”, que fizemos junto à Pastoral Carcerária e outros grandes parceiros – um material de formação e de luta mais atual do que nunca. Talvez o único fruto concreto tenha sido uma incipiente política de reparação psicológica, que ainda assim foi também sequestrada da participação e autonomia direta das mães para construí-la numa manobra de psicólogos gestores ligados à burocracia do partido.
Eu, Débora, estive pessoalmente com a Dilma na entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos, que recebi no final de 2013, e, naquela oportunidade, depois de ter sido contemplada pela fala de muitos guerreiros e guerreiras, disse publicamente a ela e a todos os presentes que a Ditadura, na verdade, nunca havia terminado para o povo pobre, negro e morador das periferias do Brasil. Disse que estávamos perdendo Mães também deprimidas, desiludidas, com câncer… No que eu fui interrompida.
Como o Movimento avalia os governos Lula e Dilma?
Da pior forma possível: além de terem ficado durante 14 longos anos na instância máxima do Governo Federal, ao fim e ao cabo com a caneta e o poder de decisão nas mãos, adiavam todas as questões fundamentais para nós, trabalhadores e trabalhadoras, sempre em nome da “governabilidade”, “governo de coalizão”, aquelas pataquadas. Durante os 14 anos que ficaram na presidência, os recuos ou retrocessos, o que faziam e o que não faziam era justificado ora “porque somos governo”, ora “porque o governo nunca foi nosso”. Vai entender… Para nós era um monte de reunião, conferência, fórum, discussão “participativa”, que não incidia em quase nada na realidade – para além dos terríveis efeitos de cooptação total de muitos movimentos e militantes dentro ou nas franjas dos gabinetes. Quem tinha poder de decisão eram os mesmos Henrique Meirelles, Michel Temer, Renan Calheiros, Gilberto Kassab e companhia – que seguem governando o país. Além disso, saíram – foram saídos – por um não menos canalha golpe institucional, desmoralizando todo mundo que é realmente de esquerda. E a esquerda parece querer continuar sendo refém de apenas uma única figura: o eterno “Lula Lá” que canaliza toda a organização e as mobilizações da esquerda brasileira há mais de 30 anos. Quando vamos deixar de ser reféns e priorizar aquilo que de fato importa – as construções reais cotidianas, na miúda, mas com respeito, igualdade e visando à nossa autonomia – nós por nós, sem pagar madeira, simpatia nem “favor” para ninguém?
Quais as perspectivas e as tarefas do Movimento após o golpe de Estado de 2016?
Como diz a guerreira Eliane Brum no texto que é prefácio do recente livro lançado pela Ponte Jornalismo9 com o nosso apoio: quer saber onde estão os verdadeiros “golpes e golpeados no Brasil”? Siga o rastro de sangue, infelizmente. O sangue do longo genocídio que desgraça o nosso povo. Então esse golpe institucional de Michel Temer e seus conhecidos canalhas do PMDB e PSDB é “apenas” mais um duro golpe contra os direitos e interesses do nosso povo. Mas a capitulação do PT também já tinha sido a farsa da “redemocratização”, enfim… Nós seguiremos lutando no cotidiano lado a lado com os nossos, tentando contribuir para a (re)organização das resistências reais e efetivas. Nós por nós.
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NOTAS
1 Cf. O Estado de São Paulo. “Lula telefona para Lembo, oferecendo forças federais”. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lula-telefona-para-lembo-oferecendo-forcas-federais,20060515p27344>.
2 Cf. Folha de São Paulo. “Cúpula do PCC ordena fim dos ataques em SP”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121590.shtml>.
3 Cf. Folha de São Paulo. “Governo nega acordo com PCC e polícia mata 71 suspeitos de ataques”.Disponível em: > .4 Cf. Brasil de Fato. “Mães de Maio: a reação contra a violência do Estado”. Disponível em: >.5 Cf. O Estado de São Paulo. “Achaque de policiais causou ataques do PCC”. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,achaque-de-policiais-causou-ataques-do-pcc-imp-,716600>.
6 A leitora ou o leitor interessado no Movimento pode assistir também ao documentário Do luto à luta: 10 anos dos Crimes de Maio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zpF2l9Ut3WE>.
7 De acordo com pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre a Violência e a Administração de Conflitos (GEVAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), divulgada em abril de 2014. Cf. Jornal Nexo. “A polícia mata muito. Aqui estão os dados para discutir o tema”. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/explicado/2015/12/10/A-pol%C3%ADcia-mata-muito.-Aqui-est%C3%A3o-os-dados-para-discutir-o-tema>. Cf. também G1. “Força policial brasileira é que a mais mata no mundo, diz relatório”. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html>.
8 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o Conceito de História”. In. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.224. Tradução de Sergio Paulo Rouanet.
9 Ponte Jornalismo & Mães de Maio. Mães em Luta – 10 anos dos crimes de maio de 2006. São Paulo: Ed. Nós por Nós, 2016.
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Maria Teresa Mhereb é Cientista social formada pela UNESP/FCLAr e tradutora formada pela USP, com parte dos estudos realizados na Université Sorbonne Paris IV. Organizou e traduziu, junto a Erick Corrêa, o livro 68: como incendiar um país, sobre os eventos de maio-junho de 1968 na França (Editora Veneta, 2018. Coleção Baderna). Traduziu diversos textos políticos e filosóficos para revistas e sites, incluindo o ensaio de Michael Löwy “A revolução é o freio de emergência: a atualidade político-ecológica de Walter Benjamin” (Revista Margem Esquerda, n. 11 / Centelhas, 2017. Boitempo).

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