quarta-feira, 30 de maio de 2018

INTERVENÇÃO MILITAR

Aparentemente, a ação dos caminhoneiros está, muito lentamente, perdendo alguma força. O que está esticando a cabeça para fora é a pedido pela ditadura militar, sob o nome não muito disfarçado, de intervenção militar. 

Um esclarecimento, sempre necessário porque é preciso estar atento às palavras. O que houve entre 1964 e 1985 não foi uma ditadura militar ou regime militar. Foi uma ditadura. Instalada pelos donos do poder de sempre: latifundiários, banqueiros, donos de industrias, a grande imprensa, a "embajada", e operada pelos militares, polícias e judiciário. 

A que estão propagando hoje tem mais ou menos os mesmos. Substitua-se grande imprensa por mídia e redes sociais manipuladas, coloque-se o judiciário e outros atuando mesmo antes da "mudança de regime", mas não muda muito. Só não dá para pensar que "eles" só vão "fazer uma limpeza" e sair. 



O latifúndio está na pista. “Ilegalidade” é só para os petroleiros.

interestrada
Patrick Camporez, em O Globo, joga um balde de água lúcida e fria sobre quem se ilude com as história do “espontaneísmo” do dos bloqueios que paralisaram o país. E em seguida (veja ao final do texto), vem outra decisão para mostrar que o que vale para o patronato não vale para os trabalhadores, embora alguns se iludam e achem que o clima de simpatia com que os caminhoneiros foi tratado valha para os petroleiros.
Camporez nos conta:
Fazendeiros e associações rurais de pelos menos três estados do país colocaram seus funcionários para “trabalhar e servir” à greve dos caminhoneiros. O GLOBO conversou, sob a condição de manter o anonimato, com produtores e lideranças dissidentes da Confederação da Agricultura e Pecuária que têm atuado no apoio à greve nos estados de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
Todos admitem que fazendeiros desses três estados “liberaram” os funcionários para servir churrasco e levar comida para os caminhoneiros, além de terem retirado os trabalhadores do campo e os colocado para conduzir tratores e maquinários em direção a pontos de bloqueio de rodovias, com o objetivo de engrossar o tamanho dos engarrafamentos e fortalecer o “movimento”.
Ouvindo produtores que, assustados com os prejuízos, abandonaram a aventura, o repórter conta que eles admitem que “quem permanece apoiando é quem quer a intervenção (militar)”
Ontem, Maria Cristina Fernandes, do Valor,  mostrou o caso do megatransportador Emílio Dalçochio, dono de nada menos de 600 caminhões dizendo a caminhoneiros que, se um dos motoristas de sua imensa frota furasse os bloqueios, estavam autorizados a atear fogo no veículo.
Todos os dias, dúzias de fotos de faixas e pichações no asfalto pedindo intervenção militar estão sendo mostrados e percebe-se claramente que, embora o estopim do movimento fossem os 16 aumentos decretados em um mês pela desastrosa política de preços de Pedro Parente na Petrobras, o foco sempre esteve nos impostos, afinal sangrados pela “gambiarra” tributária a que apelou o Governo Temer para resolver tanto a sua falta de capacidade em gerir a política energética do país quanto a falta de autoridade em restabelecer o mínimo de fluxo de carga nas rodovias.
Tudo correu frouxo, bem diferente do que está acontecendo com a anunciada greve dos petroleiros, que acaba de ser declarada ilegal pelo Tribunal Superior do Trabalho, mesmo antes de ser deflagrada. E já ameaçados por multas de R$ 500 mil por dia, caso não obedeçam.
Será que o agronegócio vai mandar tratores e carne para churrasco para os petroleiros?
Locaute pode, greve, não.

sexta-feira, 25 de maio de 2018

PETROBRAS E A GREVE DOS CAMINHONEIROS



Boa síntese do Nassif

A Petrobras, a greve dos caminhoneiros e o caso Pedro Parente, por Luis Nassif

A crise do combustível é a comprovação prática dos males do pensamento monotemático na economia, temperado com uma dose excessiva (por isso suspeita) de ideologismo, do qual o presidente da Petrobras Pedro Parente tornou-se o caso mais simbólico.
A visão desse pessoal é que, se cada ponto se concentrar na sua própria busca de eficiência, o resultado final será uma economia mais eficiente. A de Parente é mais tosca. Ele lembra CEOs dos anos 90, capazes de comprometer o futuro da empresa apenas para salvar os resultados trimestrais.
Especialistas em petróleo sabem que a lógica econômica de uma petroleira reside na interação das diversas atividades que compõem a cadeia produtiva: prospecção, refino, distribuição e transporte.
Com uma commodity exposta à volatilidade das cotações, a problemas políticos internacionais e aos problemas internos - administrando um preço-chave da economia – a lógica econômica é reduzir a vulnerabilidade através da integração dos diversos setores.
Nem esse princípio foi seguido por Parente, que passou a desmontar a empresa, vendendo-a em pedaços.
Pior.
Com o petróleo em alta, teoricamente aumentam seus lucros, pelos ganhos com a produção interna e pelo refino. E vice-versa. A queda dos preços do petróleo reduz o valor dos seus ativos. Tanto assim que o grande prejuízo da Petrobras, em 2015, foi decorrente da reavaliação do balanço, em função da redução dos preços dos derivados – que obrigou a reduzir contabilmente o valor dos ativos da empresa – e não da corrupção, conforme foi ventilado na época.
Surpreendentemente, Parente definiu a seguinte estratégia, conforme revelado por estudos da Associação dos Engenheiros da Petrobras:
  1. A partir de outubro de 2016, passou a praticar preços mais altos para os combustíveis, viabilizando a importação de derivado.
  2. Com essa política, a Petrobras perdeu mercado e a capacidade ociosa das refinarias saltou para 25%.
  3. Com menos refino, explodiram as exportações de óleo cru e as importações de derivados.
  4. O maior beneficiado foram os Estados Unidos: enquanto as importações de diesel se multiplicaram por 1,8 desde 2015, a importação de diesel dos EUA dos EUA aumentou 3,6 vezes. Passou de 41% em 2015 para 80% do total de importados pelo Brasil, ao mesmo tempo em que a Petrobras abria mão da refinaria de Pasadena.
Os grandes ganhadores foram os “traders” internacionais, dentre as quais o maior é a Trafigura, a gigante que montou o maior esquema de corrupção da história de Angola, estava envolvido até o pescoço com os escândalos da Petrobras e foi surpreendentemente liberada pelos procuradores da Lava Jato e pelo juiz Sérgio Moro.
A política de preços de Parente acabou provocando uma crise política de proporções, com o blackout dos caminhoneiros. A saída encontrada pelo governo Temer foi garantir o lucro dos investidores com recursos orçamentários.
Primeiro, pensou-se em eliminar os tributos sobre a gasolina; depois, a de ressarcir a Petrobras pela redução de ganhos que viesse a ter com a diminuição dos preços dos combustíveis. Ou seja, o país imerso em uma crise fiscal gigantesca, criando uma enorme conta fiscal para impedir a redução dos dividendos dos acionistas da Petrobras.
Não há outra explicação, que não a suspeita de corrupção da grossa.

terça-feira, 22 de maio de 2018

GAZA

Um professor de ciência política, pesquisador  e escritor estadunidense, judeu, filho de sobreviventes do holocausto nazista, deita o verbo sobre o massacre continuado do estado de Israel sobre os palestinos de Gaza. Trata-se de Norman Finkelstein, que acaba de lançar um livro sobre a questão, Gaza -  an Inquest into its Martyrdom.

Ele vem sendo entrevistado em sites progressistas como o Democracy Now, e outros, que podem ser vistos no youtube Vale a pena ver, mesmo com legendas em inglês. A questão básica que ele traz, e não só ele, é que os palestinos de Gaza vivem lá como em um campo de concentração, do qual não podem sair. São prisioneiros. 97% da água consumida lá é poluída, e envenena toda a população. E que eles têm todo o direito de quebrar as grades e sair da prisão.

Outra questão, sobre o Hamas, que foi eleito em Gaza. Os atuais protestos são coordenados pelo Hamas, e são estritamente não violentos, sem arma qualquer além de eventuais pedras lançadas. E o exército de Israel tem matado sistematicamente manifestantes, bem mais de 100, com milhares de feridos. 

Veja ainda este texto, publicado no Outras Palavras.

Gaza: a proposta de um judeu de esquerda


“Desculpem pelo texto longo e pessoal, mas em meio ao horror, é hora de refletir. Espero que cada vez mais se compreenda o porquê de boicotar Israel
Por Waldo Mermelstein
Desabafo. Desculpem pelo texto longo e pessoal. Mas sinto que precisava falar alguma coisa mais pessoal.
Em meio ao horror, é hora de refletir. Escutei e li muitas coisas sobre o massacre de Gaza. Algumas emocionantes, sentidas, sofridas, surpresas, enojadas. Outras cínicas. Algumas diretamente desumanas, burras, cruéis, ignorantes, racistas, islamofóbicas, justificatórias. Não subestimo as últimas, mas elas merecem o desprezo total.
Queria compartilhar com aqueles que estão chocados, os que não sabiam o que significava o terror sionista, um depoimento que me emocionou da forma mais forte.
Uma mulher, judia, israelense, cuja família está entre os fundadores do estado de Israel, cujo pai foi um general herói de guerra de Israel, que havia mudado de posição depois. Em seus círculos familiares e de conhecidos estava o atual assassino que dirige Israel, cujo nome não quero repetir. Pois, em 1997, após todas as frustrações de muitos anos de abandono, miséria, perseguição, um terrorista suicida se explode, matando algumas pessoas. Entre elas, sua filha, Smadar, 13 anos. Como se sabe, não há dor maior que a perda de um filho. Ao terminar o enterro, as cerimônias, a imprensa pediu para que ela falasse o que pensava sobre a responsabilidade da direção palestina pelas mortes. Sua resposta foi clara:
“Isso é o fruto dos crimes de Israel.” Acrescentou: “Isso serve aos seus propósitos. Querem matar o processo de paz e colocar a culpa nos árabes”. Ela já era de esquerda, mas a morte de sua filha a fez colocar todas as suas energias para combater as raízes do mal que causou a tragédia. Seu nome, Nurit Peled-Elhanan. Seu irmão, de quem li pela primeira vez a história, Miko Peled, começou sua militância como ativista antissionista, inspirado na trajetória, atitude e palavras de Nurit. Ela publicou um livro notável sobre a educação das crianças em Israel, mostrando como são incutidas de ódio aos palestinos, e com uma versão que ignora quem habitava o país.
Tenho amigos de infância que continuam apegados aos velhos mitos da supremacia sionista. Paciência. A história julgará, já que eles não aprenderam da sua própria. Outros, queridos amigos, que há muito romperam com isso e com quem tenho o maior prazer de compartilhar ideias e emoções. Cada um tem seu ponto de ruptura.
TEXTO-MEIO
O meu foi ainda em Israel, em 1970, com 17 anos, quando em um ônibus de Ashkelon para Gaza. Eu descia no meio do caminho para ir para o kibutz em que estava trabalhando. O ônibus estava lotado de trabalhadores palestinos que voltavam para suas casas após trabalharem em Israel. Um deles, perguntou para mim: “onde você vai”. Eu falei, “para o kibutz Zikim”. E ele, “minha família morava lá há 23 anos”. Eu fiquei atordoado, fiz que não havia entendido. E desci do ônibus. Foi o ponto decisivo para entender que éramos intrusos, invasores, colonos. Desde então fui rompendo com o sionismo por processos intelectuais. Provavelmente a família daquele palestino ainda vive em Gaza, possivelmente alguns deles nunca puderam sair de lá, pois é um lugar cercado e fechado, controlado pela potência colonial, ajudada pelos governos egípcios.
Muitos anos depois, verifiquei nos mapas da Nakba, feitas pela organização israelense Zochrot, que efetivamente, havia uma aldeia palestina onde tinha sido construído o kibutz.
Minha mãe, como já contei várias vezes, tinha outra visão. Tinha vindo criança ao Brasil e sua família tinha sido exterminada em Aushwitz. Ela dizia, “não havia outra saída”. Em 1982, foi a experiência decisiva dela. Com a invasão israelense, as milícias falangistas cristãs do Líbano, ocuparam os campos de Sabra e Chatila e executaram centenas de palestinos refugiados. Com a proteção das tropas sionistas que lhes deram total cobertura. Uma imensa crise atingiu Israel, centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em protesto. Minha mãe tomou a decisão e na semana seguinte, quando as pessoas que recolhiam sua contribuição para a Organização Sionista chegaram, ela disse: “Depois de Sabra e Chatila, não haverá mais um centavo para vocês!”.
Bem, são essas as atitudes que inspiram. As tragédias servem para ensinar. Que regime é capaz de fazer o que fez Israel em Gaza, sem que provoque uma comoção nacional? Houve algumas centenas de pessoas se manifestando em Tel-Aviv, além das manifestações dos palestinos de Israel. Mas foi só. Quem sabe este evento seja o momento de despertar de muitos judeus israelenses e pelo mundo.
A dominação de Israel é a maior desde que começou a colonização sionista. Parece absolutamente triunfante. E tem sido. Mas seus pés são de barro. Não é uma fanfarronice bizarra, mas uma reflexão histórica. Nenhum colonizador conseguiu impor-se eternamente. A não ser que tenha praticado o genocídio, como os que colonizaram os EUA ou a América espanhola ou o Brasil.
O regime do apartheid sul-africano também era um sucesso completo por muitas décadas. As semelhanças com o regime israelense são notáveis. Aliás, os ativistas que estiveram em Israel dizem que o apartheid não era tão duro e inumano como o que viram na Cisjordânia.
E ele caiu. A luta dos negros tornou impossível a sua manutenção. Os negros pagaram um preço terrível, entre mortos, presos, torturados, esfomeados e humilhados. Mas venceram. E sua estratégia era a de unir a todos os que se opunham ao apartheid. Foi a estratégia de Mandela, do Conselho Nacional Africano. Pagaram com décadas de prisão, mas a força da luta interna e da solidariedade mundiais acabou se impondo. Os mesmo que consideravam Mandela um terrorista, tiveram que se curvar. Entre os aderentes do CNA, muitos brancos, inclusive muitos judeus, como Ruth Fischer, Joe Slovo, da alta direção do CNA e do PC sul-africano. Akhmed Katrada, que passou cerca de vinte anos preso com Mandela tomou uma posição muito clara sobre o sionismo. Por isso, os sul-africanos estão entre os melhores aliados dos palestinos. Não seus governos, é claro, mas o povo. Não é por outra razão que eles expulsaram o embaixador israelense nesta semana!
Infelizmente, na queda do apartheid, as conquistas políticas se viram limitadas pelo acordo com a elite capitalista branca e o apartheid econômico se perpetuou.
São exemplos a serem seguidos. Não pelo apelo emotivo, mas pelo significado profundo. Assim como ninguém que defendesse princípios democráticos duvidava da necessidade de boicotar o nefasto regime do apartheid, espero que cada vez mais se compreenda o porquê de boicotar Israel. O desespero e a agressividade dos sionistas contra a campanha BDS (boicote, desinvestimento e sanções) são um alento, mostram que, pouco a pouco, começam a perder a batalha pelos corações e mentes. Que os mártires de Gaza, a rebelde, a insubmissa, sirvam para inspirar ódio, repulsa, e coragem aos muitos que ainda hesitam. Não é hora de se calar!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

COMO PUBLICAR E PESQUISAR BIBLIOGRAFIA SEM SER TOSQUIADO PELAS EDITORAS DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS


Veja esta matéria do Science, em inglês. O exemplo dos pesquisadores em Inteligência Artificial, poderia ser seguido por gente de outros setores, que são estrangulados pelo cerco das grandes editoras de artigos científicos.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

QUANDO HOUVER UMA COLIGAÇÃO DE ESQUERDA RADICAL NO BRASIL



SYRIZA original, grega, é sigla do que está no título acima (Συνασπισμός Ριζοσπαστικής Αριστεράς, para quem lê grego). Uma SYRIZA brasileira deveria ser capaz de ir além da coligação grega original, que ainda está (em 2018) no governo, mas acabou sendo garroteada pelo capital financeiro internacional em 2015, meses depois de ser eleita governo, ao tentar cumprir o programa pelo qual foi eleita, contra a austeridade feroz imposta ao povo grego.  Uma versão tupiniquim de coligação teria que se reformular em relação ao que existe hoje para algumas arenas, como:

Eleições

O partido brasileiro de esquerda que vier tem que se libertar do condicionamento eleitoral. Eleições não são nem suficientes nem necessárias para exercer poder político. Se as classes dominantes continuarem a ser imunes a reações dos mais pobres contra seus avanços, não importa muito quem seja eleito, e na atual condição de sem poder, a esquerda nem deveria dar muita importância em assumir postos de mando no Estado – eles não conferem lá tanto poder.

Eleições, na atual situação e conjuntura, são mais uma distração do que uma arena para a disputa política.

Justiça

A justiça brasileira está tomada, assim como as polícias, pela direita ultraconservadora e filo-fascista. Não merecem confiança, de modo que disputas políticas devem ser travadas longe do sistema judiciário. Quando houver um sistema judiciário de verdade, ele terá que ser completamente diferente do atual.

O judiciário brasileiro é aliado objetivo e subjetivo do poder econômico, principalmente financeiro. No processo de seu crescimento desde a vigência da Constituição de 1988, montou um sistema de remuneração para si, completamente à margem dos limites legais previstos em leis e na constituição, que o enquadra entre os um por cento mais ricos da população brasileira, garantindo sua sólida solidariedade em relação aos donos do dinheiro.

Ideologia e poder

O espaço da geração das ideias, da imaginação, das opiniões, do conhecimento está em grande parte enquadrado pelo sistema de mídias, de academias, de “think tanks” (estes, no Brasil, são praticamente unicamente de direita).

O poder dos bancos se traduz em poder político ilimitado. Limitar esse poder passa por boicotes gerais aos fluxos de dinheiro que permitem sua acumulação e manutenção. Quais as formas desses boicotes, tem que bolar.

Controlar o poder deles, para que o poder dos noventa e nove por cento possa eventualmente enquadrá-los e derrota-los politicamente. A resistência nas arenas política, acadêmica e da blogosfera contra as tentativas de calar as dissidências ao discurso neoliberal é essencial. Pressuposto para  começar a transformar em proposta o projeto de substituir completamente os mecanismos de fluxo e acumulação de riqueza por outros que passem a servir os interesses das maiorias.

Império

Os EUA são considerados no Brasil não como um país, mas como o centro maior de decisões, e funcionam desde tempos imemoriais como tal. Como começar a tirá-los desta posição, a distancia-los e usar a existência da China e outros países como contraponto econômico e político?
Um começo: identificação e combate aos “ativos” do império: espiões estrangeiros e mercenários brasileiros, entidades de atuação política, financiadas por órgãos do governo e de corporações estadunidense.

Cultura

Iniciar, inventar, criar uma liberdade de imprensa e de expressão, completa com informação, fundamentação teórica independente da ideologia dominante, formulação de opiniões e de propostas, projetos, programas regionais e nacionais.

Criação de espaços de pensamento racional e artístico. Onde puderem florescer e crescer.

Internacionalismo

A esquerda brasileira tem se mostrado muito fraca, tanto em efetivos como nas ações, para poder fazer uma diferença nos cenários do poder. Faltam ideias, organizações, táticas de atuação que mostrem poder de mudar o curso das coisas. O mesmo pode ser dito da esquerda europeia, dentro da qual se insere a grega. E também dos outros países do Reino Unido e da União Europeia. E dos Estados Unidos.

As grandes corporações financeiras, produtoras de armas e de poluição têm arrancado nacos cada vez maiores de poder dos estados nacionais. Países como o Brasil são ocupados por uma multiplicidade de forças tarefa dos governos dos EUA e de seus aliados, e dos governos das grandes corporações.

Há um entendimento crescente nas camadas mais racionais das populações de que elas não têm tido força para mudar o curso das coisas. Nos EUA, quase Bernie Sanders consegue ser candidato a presidente, no Reino Unido Jeremy Corbyn teve um rápido crescimento. Na Europa, Yanis Varoufakis articula com outros a formação do primeiro partido de âmbito supranacional para o parlamento europeu, o Democracy (DiEM25). Só que até agora, nada sucedeu que tenha conseguido reverter sequer em um milímetro por hora a rota de desastre do Titanic Mundial que é o capitalismo em sua atual versão.

A recente manifestação de líderes europeus de centro-esquerda a favor da liberdade e do direito de Lula de disputar as eleições de 2018 é um acontecimento muito importante, mesmo se não gerar efeitos imediatos.

Relações “exteriores”

A esquerda brasileira pode governar? Um monte de gente anda escrevendo e falando que não. É aí que políticos como Ciro Gomes podem entrar, já que o pragmatismo radical dele o retira da esquerda e o coloca mais é no centro. O que levanta a questão de se descobrir se existem grupos não de esquerda suficientemente democráticos para conviver de modo leal com os de esquerda.

Uma aliança democrática é possível? Poderia ela incluir questões essenciais como o combate à ditadura do judiciário, das polícias e das ameaças militares, ao monopólio da mídia e da banca privada, reversão das privatizações danosas, volta a uma política externa própria? Ou deveria limitar-se a apenas alguma forma de resistência à escalada fascista na sociedade? 

Tudo está em aberto, por ora muito em aberto.

terça-feira, 15 de maio de 2018

CLASSES INTERESSAM?



Marx deu grande centralidade a conceito de classes sociais, e a frase em que ele afirma a importância das lutas de classes na história é bem conhecida. Muitos historiadores têm se debruçado sobre o papel das classes sociais na conformação do estado e nas lutas políticas tanto nos períodos mais recentes como em épocas mais remotas. Na realidade a história é incompreensível sem incluir os mecanismos que as classes dominantes usam para legitimar seu predomínio sobre as demais.

Propomos aqui que para entender as potencialidades de atuação de comunidades locais e de interesses difusos nos processos de decisões sobre grandes projetos é necessário que o estudo passe pela análise da estrutura das classes envolvidas.

Fogo de barragem ideológica

Nos dias que correm os temas políticos são manipulados através de uma guerra total sobre o conhecimento. Guerra total, que junta a expansão de plataformas do discurso neoliberal na Academia e na think-tank-lândia com o esforço para desacreditar e suprimir o pensamento divergente. A iniciativa dessa guerra é das minorias super ricas formadas em torno das instituições financeiras privadas e estatais, que dominam a mídia em todo o mundo, e no Brasil detêm o monopólio de fato.

Os “militantes” que trabalham para o domínio dos um por cento, como nos tempos de ascensão dos fascismos europeus da primeira metade do século vinte, incluem não só os extratos tradicionalmente reacionários da classe média, como gerentes, engenheiros e técnicos especializados, mas caracteristicamente na conjuntura brasileira, os que vêm sendo chamados de pobres de direita.

Classes no capitalismo escravagista e depois

É de grande interesse sempre examinar o que a literatura do centro do império (território dos EUA na América do Norte) pode oferecer sobre o que acontece por lá o livro de Steven Fraser, “Class Matters: The Strange Carrier of an American Dellusion” – é valioso pela possibilidade de fazer paralelos históricos e estruturais entre Brasil e EEUU (o livro é centrado nos EEUU). O fato de serem duas economias em que o escravagismo marcou a economia e a sociedade, em variantes ligeiramente deferentes, e em que os efeitos desse escravagismo continuam na atualidade reforça a oportunidade de ver os paralelos.

Em outra obra publicada recentemente “The Half Has Never Been Told: Slavery and the Making of American Capitalism”, de Edward E. Baptist, é possível verificar que a omissão ou o encobrimento de explicações relevantes sobre a estruturação do capitalismo do século 19 e do capitalismo atual, está escandalosamente presente na história oficial dos dois países.

O fato de a renda extraída das populações escravizadas na produção de mercadorias como o algodão lá e o açúcar e depois o café, aqui, tenha se apoiado na ideologia do racismo e nas técnicas da tortura e terrorismo sobre esses trabalhadores. Muito do racismo atual nas duas sociedades provem da continuidade da atual elite com a antiga, que nunca aceitou a perda desse “capital” humano e nunca deixou de dominar os meios de comunicação em massa – primeiro a imprensa, depois a mídia.

Criminalização como instrumento da luta (guerra) de classes

Setores das classes não dominantes reagem, em determinadas circunstâncias. Quando essa ação atinge determinada escala, podem surgir partidos políticos como os socialistas e comunistas dos séculos 19 e 20. A reação à mobilização dos deserdados da terra por parte do Estado sempre foi de reprimir, pela violência se não por outras maneiras. Parte do trabalho de repressão a partidos ou movimentos que contrariem os “direitos” das classes dominantes é feito armando o aparelho armado do Estado, com leis, ideologias e armas propriamente, e difamando esses grupamentos através das mídias dominantes.

Quando isso não é suficiente, ignoram-se as regras vigentes, ou eliminam-se, colocando membros do Estado para gerir os negócios em favor dos de sempre.
Mais uma vez é bom traçar um paralelo com os EUA, frequentemente citados como exemplo de um país com instituições democráticas mais sólidas do que as brasileiras. Fraser ajuda a recuperar a repressão que o Estado de lá impôs aos estudantes que protestaram e atuaram contra a guerra do Vietnam.  Na realidade, todo o cardápio do atual golpe brasileiro esteve presente nos EUA. Brutalidade policial, infiltração, criminalização de grupos como o SDS – sigla inglesa de Estudantes para uma Sociedade Democrática e Panteras Negras, que foram muito fortes, e que foram esmagadas por uma confluência bem parecida com a que domina o Brasil atual: mídia conservadora, promotores, polícia, políticos corruptos.

Lá como cá existe uma guerra permanente que aterroriza via tratamento brutal os que são marcados como “suspeitos” pela polícia e coloca atrás das grades multidões de jovens dos extratos da população mais pobres e de pele mais escura.

Movimentos como os pela moradia ou pela terra são integrados predominantemente por pessoas desses extratos, e são atacados tanto pelo Estado – mídia, judiciário e polícias como por milícias de sicários.

Classes interessam

Interessam, porque são a base em que se perpetuam, ou pioram, a desigualdade de riqueza e de oportunidades. Mas também sempre interessa disfarçar a estrutura de classes, usando racismo, “meritocracia”, demonização dos que ousam desafiar a ordem.  Conhecemos mal a estrutura e a dinâmica das lutas de classes, principalmente das atuais. É tempo de examinar isso tudo, bem rápido, mais rápido do que as classes dominantes.

domingo, 13 de maio de 2018

LIBERDADE É CONSTRUÇÃO. HISTÓRIA NO DIA DAS MÃES

Só bem mais tarde é conquista, a ser defendida quando for conseguida. Por ora, comecemos por conhecer a natureza da opressão. Artigo publicado no jornal GGN


Reescrever a história dos mortos: doze anos dos Crimes de Maio, por Maria Teresa Mhereb

do Blog da Boitempo
por Maria Teresa Mhereb
Epopeia dos vencidos: os fatos… tal qual eles propriamente são?
Maio de 2006. Último ano do primeiro governo Lula; primeiros meses de Cláudio Lembo (antigo PFL) como governador do Estado de São Paulo, cargo que assumiu após a saída de Geraldo Alckmin (PSDB) para concorrer à presidência da república pela primeira vez (disputa que seria perdida para Lula reeleito).
Uma onda de ataques contra as forças de segurança tomou o Estado de São Paulo, sobretudo sua capital. Debitados ao PCC (Primeiro Comando da Capital), os ataques seriam, segundo a grande imprensa brasileira, uma reação à transferência de presos que planejariam rebeliões para o dia das mães. Durante uma semana, foram registradas revoltas em dezenas de presídios e diversos atentados a bases policiais, centenas de carros e ônibus foram queimados. Temendo um suposto toque de recolher acionado pelo PCC (jamais confirmado pela própria organização, mas amplamente divulgado pelos meios de comunicação), boa parte dos estabelecimentos comerciais, escolas e universidades foi fechada.
O medo espalhou-se e, junto a ele, o caos assolou as cidades paulistas. Era preciso dar uma resposta à altura da violência posta em prática pelo PCC e retomar a ordem. Para isso, Lula ofereceu a Lembo a ajuda das Forças Armadas Federais1, mas as forças policiais paulistas, dada sua larga competência no assunto, conseguiram fazê-lo sozinhas.
O fim dos ataques ocorreu, curiosamente, um dia após o encontro entre o líder do PCC (Marcola), sua advogada e um policial militar. Imediatamente, a imprensa levantou a hipótese de que teria havido uma negociação entre o PCC e o governo do Estado de São Paulo2. Embora o encontro tenha sido admitido pelo delegado-geral da Polícia Civil, o acordo, no entanto, foi negado, e o delegado atribuiu a redução dos ataques ao sucesso da repressão policial3: enquanto os diversos ataques do PCC vitimaram cerca 60 agentes públicos de segurança, a própria polícia paulista matou, entre os dias 12 e 20 de maio, pelo menos 500 civis4.
 Cinco anos depois, um estudo da ONG Justiça Global e da Clínica Internacional de Direitos Humanos de Harvard concluiu que os ataques não teriam ocorrido em função da transferência e isolamento de presos, mas seriam uma revanche do PCC contra o sequestro e o pedido de resgate do enteado de Marcola: o sequestro teria sido organizado por um investigador de polícia5(!). Os indícios apontariam também para a participação de grupos de extermínio da polícia na execução de parte das vítimas, cujo perfil seguiu um padrão bem definido: a maioria delas era, evidentemente, negra, pobre e moradora das periferias.
Com a história oficial, elaborada por Estado, grande imprensa e forças policiais, os trágicos eventos descritos ficaram conhecidos – e são ainda lembrados – como “os ataques do PCC”, que precisaram ser combatidos com pulso firme pelo Estado. A liquidação de centenas de seus supostos membros é, segundo essa mesma narrativa, uma das provas de que o combate ao crime foi bem sucedido naquela ocasião.
Mas uma versão definitiva dessa história, uma epopeia que tem vencidos de ambos os lados (e em que apenas o terror do Estado foi vencedor), está longe de ser escrita. Disputar a história, reescrevê-la, é ainda uma tarefa a cumprir para as centenas de suas vítimas diretas ou indiretas.
Mães de Maio: narrativas em disputa
Um mês após o massacre de maio de 2006, as investigações sequer haviam começado. Processos que chegaram a ser abertos foram arquivados mais tarde. Seguindo um método bastante tradicional aplicado pela Justiça brasileira (e aprovado por inúmeros setores da sociedade civil), muitas das vítimas foram criminalizadas pelos investigadores: visando a legitimar a ação policial, foram acusadas de serem usuárias ou narcotraficantes, de terem se envolvido em roubos ou assaltos. Não raro, também, as próprias mães das vítimas foram acusadas de herdarem pontos de vendas de drogas que seriam de seus filhos.
Doze anos se passaram. Nenhuma surpresa.
Mas o descaso da Justiça na investigação das centenas de assassinatos não calou todos os que sobreviveram à chacina: as mães e os familiares de muitas dessas vítimas do terrorismo de Estado uniram-se em um movimento chamado Mães de Maio6. Nascido em Santos, litoral de São Paulo, o grupo é coordenado pela mãe de uma das vítimas, Débora Maria da Silva, e conta com dezenas de membros, a maior parte mulheres, que estão juntas em reuniões, intervenções e atos organizados, encontros nos quais podem não apenas fortalecer-se emocionalmente, como também levar sua dor para o debate e o enfrentamento políticos. Entre suas pautas de luta estão a memória, a verdade e a justiça com relação ao massacre, a desmilitarização da polícia e o combate à violência estatal. Com efeito, como se sabe, a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, e a cada quatro pessoas mortas pela polícia paulista, três são negras7.
Se a dolorosa experiência comum dessas mulheres com o terrorismo de Estado impulsionou sua aproximação, ela também faz com que sua luta não seja apenas por seus filhos, mas por todos aqueles que são vítimas em potencial da tragédia social que se repõe cada vez que uma Marielle, que uma liderança indígena, campesina ou quilombola é executada no país. Trata-se, em última instância, de um movimento cujo objetivo é romper a continuidade de uma história de violência que se repete há centenas de anos no Brasil. Por isso, essas Mães assumem, e têm clareza disso, a herança de lutas ancestrais, que remetem ao sequestro e escravidão dos negros africanos, ao genocídio indígena brasileiro e à forçosa migração nordestina para o Sudeste em busca de sobrevivência.
Walter Benjamin escrevia em suas Teses “Sobre o conceito de história” que “o dom de atear ao passado a centelha da esperança é privilégio do historiador que está convencido de que nem mesmo os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”8. As Mães de Maio conhecem muito bem a verdade contida nessas palavras, e atuam como verdadeiras historiadoras do passado e do presente dos vencidos, numa tentativa constante de reescrever a história de seus mortos, para que eles não sejam lembrados apenas segundo o relato policial, para devolver a voz que lhes foi roubada e romper o silêncio que lhes foi imposto. Em suma, essas Mães disputam a história e, para isso, sabem que é preciso também renomear os fatos: daí seu trabalho para que os Crimes de Maio sejam re-conhecidos – e não apenas eventualmente lembrados, como acontece há doze anos, como “os ataques do PCC”, que permitem encerrar o passado, bem ao gosto da historiografia feita pelas classes dominantes.
Movimento social de combate aos crimes do Estado, as Mães de Maio tornaram-se, pela radicalidade política e impacto de sua luta, uma importante referência para inúmeras famílias que, todos os anos, fazem, elas também, sua marcha fúnebre, e vêm atuando junto a diversos outros movimentos e instituições engajadas na mesma luta. No Rio de Janeiro, as Mães de Maio trabalham ao lado da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, das Mães de Manguinhos, de Fóruns de Juventude. Em São Paulo, junto às Mães da Zona Sul, às Mães de Osasco, às Mães Mogianas, à Pastoral Carcerária, à Associação Familiar de Presos e Presas (Amparar), ao Coletivo Fala Guerreira e à Ponte Jornalismo.
No dia 11 de março de 2017, as Mães de Maio uniram-se também às Mães em Luto da Zona Leste, da cidade de São Paulo, para, juntas, organizarem um calendário de luta contra os assassinatos que vinham ocorrendo nessa região da cidade – e cujos indícios apontam mais uma vez para a ação policial. A entrevista abaixo, feita com Débora Maria da Silva nesse encontro, que aconteceu no Centro de Direitos Humanos de Sapopemba (Zona Leste de São Paulo), foi realizada a pedido do site franco-brasileiro Autres Brésils. Ela deveria compor um dossiê sobre o fim do ciclo dos governos de esquerda na América Latina; o dossiê, no entanto, nunca foi publicado. Nos doze anos de tão dramática efeméride, esta é uma homenagem à força e à luta incansável dessas mulheres.
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Os Crimes de Maio ocorreram em maio de 2006 durante o primeiro Governo Lula. Como Lula se posicionou em relação a eles naquele momento?
Sim, os Crimes de Maio ocorreram durante o primeiro Governo Lula, e ele e seu governo sequer manifestaram pêsames ou sentimentos às mais de 500 famílias de vítimas fatais, naquele que foi o maior massacre estatal da história contemporânea. Nem se deram ao trabalho. E nós sabemos que ao longo de todos os governos Lula e Dilma Rousseff as políticas federais para a área da chamada “segurança pública”, na prática, apenas jogaram mais recursos e força à lógica prática de fortalecimento do sistema penal, do encarceramento, da militarização e, portanto do genocídio. Basta lembrarmos que a política das UPPs nas favelas do Rio de Janeiro, cujos efeitos nossos irmãos cariocas sentem até hoje, foi uma das grandes vitrines de políticas articuladas entre a União e os Estados. Vimos também a expansão das prisões e o aumento, ano após ano, do número de execuções de jovens pobres, na maioria negros.
Vocês tiveram algum contato com a ex-presidenta Dilma Rousseff?
Com a ex-presidenta Dilma Rousseff nós nunca nos reunimos pessoalmente. Ela também nunca se deu a esse “trabalho”. Nós enviamos uma Carta à presidenta em meados de 2012, quando já sentíamos os efeitos e alertávamos sobre o que, de fato, viria a acontecer, como veio: os crimes de junho, julho e todo o segundo semestre de 2012 aqui em São Paulo. Chacinas em série que vitimaram centenas de nossos meninos e meninas por aqui. Nós enviamos publicamente a Carta no meio do ano, e só fomos recebidos mesmo – e isso não por ela pessoalmente, mas pela equipe do Sr. Gilberto Carvalho (então Ministro da Secretaria Geral da Previdência) em outubro daquele ano. Pouco ou quase nada saiu de efeito prático das dezenas de propostas que nós preparamos e levamos para lá, dentre as quais se destaca a “Agenda Nacional Pelo Desencarceramento”, que fizemos junto à Pastoral Carcerária e outros grandes parceiros – um material de formação e de luta mais atual do que nunca. Talvez o único fruto concreto tenha sido uma incipiente política de reparação psicológica, que ainda assim foi também sequestrada da participação e autonomia direta das mães para construí-la numa manobra de psicólogos gestores ligados à burocracia do partido.
Eu, Débora, estive pessoalmente com a Dilma na entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos, que recebi no final de 2013, e, naquela oportunidade, depois de ter sido contemplada pela fala de muitos guerreiros e guerreiras, disse publicamente a ela e a todos os presentes que a Ditadura, na verdade, nunca havia terminado para o povo pobre, negro e morador das periferias do Brasil. Disse que estávamos perdendo Mães também deprimidas, desiludidas, com câncer… No que eu fui interrompida.
Como o Movimento avalia os governos Lula e Dilma?
Da pior forma possível: além de terem ficado durante 14 longos anos na instância máxima do Governo Federal, ao fim e ao cabo com a caneta e o poder de decisão nas mãos, adiavam todas as questões fundamentais para nós, trabalhadores e trabalhadoras, sempre em nome da “governabilidade”, “governo de coalizão”, aquelas pataquadas. Durante os 14 anos que ficaram na presidência, os recuos ou retrocessos, o que faziam e o que não faziam era justificado ora “porque somos governo”, ora “porque o governo nunca foi nosso”. Vai entender… Para nós era um monte de reunião, conferência, fórum, discussão “participativa”, que não incidia em quase nada na realidade – para além dos terríveis efeitos de cooptação total de muitos movimentos e militantes dentro ou nas franjas dos gabinetes. Quem tinha poder de decisão eram os mesmos Henrique Meirelles, Michel Temer, Renan Calheiros, Gilberto Kassab e companhia – que seguem governando o país. Além disso, saíram – foram saídos – por um não menos canalha golpe institucional, desmoralizando todo mundo que é realmente de esquerda. E a esquerda parece querer continuar sendo refém de apenas uma única figura: o eterno “Lula Lá” que canaliza toda a organização e as mobilizações da esquerda brasileira há mais de 30 anos. Quando vamos deixar de ser reféns e priorizar aquilo que de fato importa – as construções reais cotidianas, na miúda, mas com respeito, igualdade e visando à nossa autonomia – nós por nós, sem pagar madeira, simpatia nem “favor” para ninguém?
Quais as perspectivas e as tarefas do Movimento após o golpe de Estado de 2016?
Como diz a guerreira Eliane Brum no texto que é prefácio do recente livro lançado pela Ponte Jornalismo9 com o nosso apoio: quer saber onde estão os verdadeiros “golpes e golpeados no Brasil”? Siga o rastro de sangue, infelizmente. O sangue do longo genocídio que desgraça o nosso povo. Então esse golpe institucional de Michel Temer e seus conhecidos canalhas do PMDB e PSDB é “apenas” mais um duro golpe contra os direitos e interesses do nosso povo. Mas a capitulação do PT também já tinha sido a farsa da “redemocratização”, enfim… Nós seguiremos lutando no cotidiano lado a lado com os nossos, tentando contribuir para a (re)organização das resistências reais e efetivas. Nós por nós.
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NOTAS
1 Cf. O Estado de São Paulo. “Lula telefona para Lembo, oferecendo forças federais”. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,lula-telefona-para-lembo-oferecendo-forcas-federais,20060515p27344>.
2 Cf. Folha de São Paulo. “Cúpula do PCC ordena fim dos ataques em SP”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121590.shtml>.
3 Cf. Folha de São Paulo. “Governo nega acordo com PCC e polícia mata 71 suspeitos de ataques”.Disponível em: > .4 Cf. Brasil de Fato. “Mães de Maio: a reação contra a violência do Estado”. Disponível em: >.5 Cf. O Estado de São Paulo. “Achaque de policiais causou ataques do PCC”. Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,achaque-de-policiais-causou-ataques-do-pcc-imp-,716600>.
6 A leitora ou o leitor interessado no Movimento pode assistir também ao documentário Do luto à luta: 10 anos dos Crimes de Maio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=zpF2l9Ut3WE>.
7 De acordo com pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos sobre a Violência e a Administração de Conflitos (GEVAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), divulgada em abril de 2014. Cf. Jornal Nexo. “A polícia mata muito. Aqui estão os dados para discutir o tema”. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/explicado/2015/12/10/A-pol%C3%ADcia-mata-muito.-Aqui-est%C3%A3o-os-dados-para-discutir-o-tema>. Cf. também G1. “Força policial brasileira é que a mais mata no mundo, diz relatório”. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2015/09/forca-policial-brasileira-e-que-mais-mata-no-mundo-diz-relatorio.html>.
8 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre o Conceito de História”. In. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1999, p.224. Tradução de Sergio Paulo Rouanet.
9 Ponte Jornalismo & Mães de Maio. Mães em Luta – 10 anos dos crimes de maio de 2006. São Paulo: Ed. Nós por Nós, 2016.
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Maria Teresa Mhereb é Cientista social formada pela UNESP/FCLAr e tradutora formada pela USP, com parte dos estudos realizados na Université Sorbonne Paris IV. Organizou e traduziu, junto a Erick Corrêa, o livro 68: como incendiar um país, sobre os eventos de maio-junho de 1968 na França (Editora Veneta, 2018. Coleção Baderna). Traduziu diversos textos políticos e filosóficos para revistas e sites, incluindo o ensaio de Michael Löwy “A revolução é o freio de emergência: a atualidade político-ecológica de Walter Benjamin” (Revista Margem Esquerda, n. 11 / Centelhas, 2017. Boitempo).