sexta-feira, 10 de outubro de 2014

MAIS SOBRE IMPRENSA, MÍDIA E AS ELEIÇÕES


Do site Manchetometro

É A ECONOMIA, ESTÚPIDO, OU NÃO? A COBERTURA DO ESTADÃO NOS PLEITOS DE 1998 E 2014

No dia 10 de setembro, o Manchetômetro apresentou análises que comparavam a cobertura da mídia durante o período oficial de campanha da eleição de 1998, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) pleiteava a reeleição, e durante a campanha deste ano, em que a presidenta Dilma Rousseff (PT) persegue o mesmo objetivo. A intenção do estudo comparativo é testar a tese do contrapoder, muito comumente aventada em debates sobre o papel da mídia. Segundo tal tese, a mídia cumpriria a função de se opor ao poder constituído, no caso, o candidato e partido que ocupa a presidência e pleiteia a reeleição, mantendo-o sob constante escrutínio. A comparação do Manchetômetro refuta a tese, contudo. Agregando os dados dos jornais Folha, Estadão e O Globo, FHC teve uma proporção de notícias negativas para neutras menor do que 1 para 5, mais especificamente, de 19%. Dilma alcança até agora a marca de 80%, ou seja, de 4 negativas para cada 5 neutras. Assim, a grande imprensa é quatro vezes mais “contrapoder” no caso da candidatura do PT do que foi para a do PSDB em 1998. FHC também recebeu um número alto de matérias positivas, o que é algo raro nas coberturas de todas as eleições. Se comparadas às matérias neutras, as positivas recebidas por FHC chegam a 35%: 2 para 5. Na cobertura de 2014, Dilma teve somente 4 notícias positivas durante o período de campanha até o primeiro turno; pífios 2% de seu total de neutras. Ou seja, a grande mídia não só não foi contrapoder na eleição de 1998, mas foi francamente situacionista.
Mas é sempre possível argumentar, e algumas pessoas de fato o fazem, que essa diferença gritante nas coberturas se deve não a um viés da grande mídia, mas ao contexto econômico de cada eleição. Ora, não precisamos apelar para o chavão “It’s the economy, stupid!”, cunhado pelo assessor de Bill Clinton, James Carville, para reforçar o argumento de que a economia é assunto de máxima relevância eleitoral. Pois bem, nesse artigo testamos a hipótese econômica: o tratamento favorável dado a FHC em 1998 se deveu ao contexto econômico favorável, enquanto que, inversamente, o tratamento muito desfavorável recebido por Dilma no ano corrente é produto de ambiente econômico comparativamente pior. Digo comparativamente, pois não há sentido pensarmos em termos absolutos, já que o objetivo é poder avaliar os motivos por trás do comportamento da grande mídia.
Vamos nos restringir aqui ao enquadramento do tema economia no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1998, foram publicadas 50 chamadas de capa positivas, 76 negativas e 17 neutras sobre o tema durante o período eleitoral. Este ano foram 9 notícias positivas, 127 negativas e 23 neutras. Como se vê, os números de notícias negativas nas capas do Estadão sugerem que o desempenho econômico do Brasil naquela época fora consideravelmente melhor daquele alcançado este ano. A melhor maneira de comprovar a verossimilhança desta interpretação é estabelecer uma comparação entre os dois períodos baseada em alguns dos fatores mais relevantes do noticiário econômico, e que frequentam a fala dos economistas e jornalistas econômicos de plantão: inflação, desemprego, crescimento, taxa de juros e salário mínimo.
Comecemos pela inflação. Os índices inflacionários de 1998 foram os mais baixos de uma série de quedas constantes que teve início com a implantação do Plano Real: o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) fechou o ano em 1,65 [1] e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), em 2,49. Na época, o governo federal ainda não adotava metas para inflação de modo que não se pode identificar se os números estavam dentro das expectativas para o ano, mas ainda assim, a inflação foi baixíssima. Ela foi tema de apenas uma chamada de capa durante a campanha de 1998, a manchete do dia 19/07: “Bird aconselha Brasil a manter inflação baixa”. Em 1999, o Banco Central passou a estabelecer metas para a inflação anual.
A meta de 2014, estabelecida já em 2012 [2], é de 4,5% com margem de dois pontos para mais ou para menos. Esse ano, a inflação tem sido o tema de maior destaque na cobertura econômica, estando presente em 9 textos de capa entre manchetes e chamadas, sendo sempre enquadrada como problema gravíssimo sobre o qual o governo federal parece não ter controle. O acumulado do IPCA até o mês de agosto está em 4,02 e o INPC em 4,11. Conforme informou o Estadão no dia 29/09, o Banco Central previu que a inflação de 2014 deve ficar em 6,3%, próxima, portanto, do teto da meta. No entanto, a manchete da edição do dia 12/09, “Ata do BC vê inflação perto da meta só em 2016” – assim como o texto que a acompanha – não cita que a meta citada se trata, na verdade, do centro da meta. Também em outras edições, como o editorial “Inflação real e fantasia oficial” do dia 21/09, para citar apenas um exemplo, tratam a inflação como problema sobre o que o governo federal não consegue solucionar.
Um segundo tema importante no noticiário econômico é o desemprego, sobretudo durante esta campanha. O “avanço do desemprego”, segundo análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) na capa do dia 19/09, é classificado como um “sinal alarmante”, reflexo da “grave crise da indústria”. A Pnad divulgada na véspera indicara um aumento no índice de desemprego de 6,1 para 6,5%, o segundo menor desde 2002. Na campanha de 1998, o tema desemprego aparece somente em duas chamadas de capa. Uma delas o aponta como tema das eleições estaduais, a outra noticia o menor índice em seis meses. A Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) indica que, curiosamente, em 1998 a taxa de desemprego nas áreas metropolitanas correspondia a 18,6% da PEA, enquanto em 2014, a taxa verificada no mês de junho foi de 10,8% [3]. Ou seja, o desemprego naquela época era quase o dobro do que é agora, mas, segundo a ótica editorial do Estadão, agora ele é problema e naquela época não era.
A questão do crescimento econômico é também muito relevante no noticiário. No ano de 1998, a variação do Produto Interno Bruto, ou seja, o crescimento da economia foi de 0,00%, um cenário de estagnação [4]. A palavra estagnação, no entanto, não foi usada nas capas do Estadão para definir o estado da economia. Já a palavra crescimento aparece 4 vezes: chamada aponta que o Ipea diminuiu a previsão de crescimento da economia; outra chamada identifica que o déficit impede o crescimento; a terceira relaciona estabilidade e crescimento; e a última identifica que o crescimento e o emprego constituem a “próxima etapa” da economia brasileira. Em 2014, a última previsão de crescimento do PIB de 2014, divulgada pelo governo no dia 22/09, foi de 0,9%. A palavra estagnação já apareceu três vezes nas capas do Estadão ligada a outras palavras como recessão, inadimplência e inflação. Outros adjetivos são também utilizados para definir a economia do país: travada, freada, mau humorada, para citar alguns. Já a palavra crescimento aparece uma vez: “O que dificulta o crescimento” (10/08/2014). O jornal parece adotar dois pesos e duas medidas aqui também, pois só vê estagnação agora enquanto não a via em 1998, quando o PIB literalmente não crescia.
Agora, tratemos da taxa de juros. Em 1998, duas taxas de juros eram estabelecidas pelo Comitê de Política Monetária: a Taxa Básica do Banco Central (TBC), espécie de piso da taxa, e a Taxa de Assistência do Banco Central (TBAN), equivalente ao teto. Durante o período eleitoral de 1998 ocorreram três reuniões do Copom [5], a primeira no dia 29/07, diminuiu a TBC e a TBAN de 21,00% para 19,75% e de 28,00% para 25,75%, respectivamente. No dia seguinte, não houve nenhuma notícia na capa sobre a alteração: a manchete do dia 30 foi um elogio ao leilão de privatização da Telebrás que ocorrera na véspera. O editorial intitulado “A grande vitória do governo” tratou da mesma questão. A segunda reunião ocorreu no dia 02/09. A TBC caiu para 19,00% e a TBAN aumentou para 25,49%. No dia seguinte, chamada de capa anuncia: “Juro cai pela 7ª vez no ano”. O texto abaixo da chamada esclarece, porém, que apesar do piso ter sido reduzido, o teto sofreu elevação. A elevação em questão não foi pouco significativa – 4 pontos – mas foi totalmente ignorada na chamada.
No dia 10/09, em sessão extraordinária, o Copom manteve o piso da taxa em 19,00%, mas aumentou o teto para 49,75%. O aumento emergencial da taxa após o “mais dramático dia para o Brasil desde o início da crise mundial”, marcado por queda de 15,83% na Bolsa de São Paulo foi o tema da manchete do dia 11: “Fuga de divisas cresce e juros vão a 49,7%”. Segundo o texto sob a manchete, para conter a fuga de divisas, a única alternativa ao aumento de juros seria a desvalorização do real, mas o governo teria optado pela estabilidade da moeda. A mesma notícia informa que o presidente Fernando Henrique havia dito que, por ele, os juros não aumentariam. Lê-se também que as principais bolsas do mundo também caíram. O editorial intitulado “O papel do Congresso na crise” chama os congressistas a assumir responsabilidade sobre a situação: “Há uma crise mundial, o Brasil é parte do mundo e o Congresso brasileiro é parte de quê?”
A TBAN foi extinta em 04/03/99, e a TBC substituída pelo Sistema Especial de Liquidação e de Custódia, a taxa Selic. Durante o período eleitoral de 2014 houve duas reuniões do Copom. A primeira delas foi no dia 16/07, e a taxa foi mantida em 11,00%. No dia seguinte, análise apresentada na capa do Estadão indica que “elevar juros, no momento, é ação com potencial para conduzir a uma recessão”. A segunda reunião foi no dia 03/09 e a taxa foi, novamente, mantida. No dia 4, chamada de capa apenas informa sobre a decisão do Comitê.
O tema salário mínimo não esteve presente em nenhuma chamada de capa, nem no período eleitoral de 1998 nem de 2014. Mas, por se tratar de variante crucial para a compreensão da situação econômica do país, analisemos brevemente o tema. Em agosto 1998, o valor do salário mínimo nominal era R$130,00 quando o salário mínimo necessário para manter uma família de 4 pessoas (dois adultos e duas crianças), de acordo com o cálculo do DIEESE, era R$852,12. Ou seja, para atingir a renda necessária, o trabalhador precisaria ganhar aproximadamente 6,5 salários. Em agosto de 2014, o valor nominal é R$724,00 e o necessário R$ 2.861,55, ou seja, o salário mínimo necessário corresponde a 3,9 vezes o salário nominal.
Finalmente, se faz necessário um comentário especial sobre a cobertura do que foi, provavelmente, o dia mais importante para a economia brasileira no ano de 1998. No dia 23 de setembro, em um pronunciamento no Palácio do Itamaraty, o então presidente Fernando Henrique anunciou medidas econômicas drásticas que poderiam incluir aumento de impostos, diminuição de gastos, baixo crescimento econômico e um novo acordo com o FMI. No dia seguinte, a manchete: “FHC convoca nação para ajuste fiscal”. Nesta situação de crise extrema, com juros já altíssimos e a iminência de um novo empréstimo com o FMI, a capa do jornal o Estado de São Paulo expõe o apelo do presidente à nação e aos estados, municípios, bem como aos Poderes Legislativo e Judiciário para a solução da crise. Também o editorial do dia elogia a atitude do presidente que “assumiu o comando político do programa de combate à crise”, ainda que com atraso devido ao seu envolvimento na campanha eleitoral.
A análise apresentada até aqui demonstra que, com exceção da inflação, outros aspectos da economia de 1998 eram bem menos favoráveis que os de 2014. Como explicar, então, a cobertura tão negativa da economia brasileira na campanha atual? Uma coisa é certa, ela está de acordo com o viés anti-PT e anti-Dilma que a análise do MANCHETÔMETRO detecta na cobertura do Estado de S. Paulo, dos outros dois jornais impressos e do Jornal Nacional. A escolha discricionária de matérias (agendamento) e a interpretação tendenciosa de fatos (enquadramento) caracterizam a cobertura da economia no Estadão, espelhando o viés que identificamos na cobertura política.

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