quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

UMA RETROSPECTIVA DE 2013, POR SERGIO SARAIVA




A classe-média, a grande mídia e o Ministro Joaquim Barbosa.
E se, em um exercício de imaginação, buscássemos em nossa mente uma representação para o ano que termina, qual ela seria? Creio que a intrincada rede de preconceitos, ressentimentos e rancores que emaranha a classe-média brasileira, a grande mídia e um personagem ainda a procura de um autor, representado na figura do Ministro Joaquim Barbosa. Ou, talvez, fosse mais próprio a imagem de uma calda de cobertura sobre um confeito de três frutas amargas, o licor de bílis que as amalgama.
 
O ano de 2012 foi o ano do “julgamento do mensalão” e, na minha memória, nada melhor o representa do que meia dúzia de senhores togados, sessentões priápicos, batendo com suas pistolas sobre a bancada e com isso tensionando os cordames dos freios e contrapesos que equilibram nosso Estado democrático de direito.
 
Se buscássemos uma imagem síntese para os anos Lula, seria o Bolsa Família, o resgate de tantos miseráveis. A esperança vencendo o medo e a fome e o medo da fome.
 
Mas para o ano de 2013, talvez mais fácil se buscássemos traduzi-lo em uma palavra, a partir do sentimento que nos desperta o triângulo que propomos representá-lo: mesquinho.
Porque mesquinhas foram as atitudes dos três personagens do ano de 2013, mesquinhas no que têm de pequenas e cruéis - mofinas.
 
A grande mídia despiu-se de qualquer veleidade de isenção, mais uma vez mandou às favas os pruridos de consciência, tornou-se hipócrita. Praticou a presdigitação da informação ao ponto de prever um eminente racionamento de energia pela combinação malévola de falta de chuvas com o aumento do consumo pela irresponsável promoção do poder aquisitivo das classes pobres. 
 
Previu também a carestia advinda da inflação do tomate. E, quando foi necessária na defesa de uns, essa presdigitação conseguiu lograr a invisibilidade de fatos de conhecimento público.  Dos fatos que não eram do seu interesse, claro está.   A outros persegui, permitiu-se a prática da execração pública dos seus adversários de ideias. 
 
Advogou pelo tratamento cruel, desumano e degradante dos adversários caídos. Tornou-se grosseira no trato e grosseira no texto, desceu ao nível do calão.
E, paradoxalmente, perdeu poder e tornou-se extramente perigosa. Julgava-se a própria opinião pública, desnudou-se como tão somente a opinião publicada, mas restou-lhe como campo de influência o Judiciário. Por exaltação ou por constrangimento. Define-lhes os réus, antecipa-lhes os votos e emprega seus parentes e aposentados.  
 
Uma imbricada relação que levou-me a buscar ajuda em um dos nossos mais cultos generais para defini-la:
“São as mesmas vivandeiras castelãs, sempre alvoroçadas e aos bivaques, que vêm, agora, bolir com os meirinhos e provocar extravagâncias do poder Judiciário”.
 
Tornou-se especialmente mesquinha em relação aos seus heróis. Seus patrões, quando morrem, tornam se grandes jornalista, nomeiam logradouros públicos, como tal. Em vida, não foram tratados como jornalistas e sim como doutores. Seus grandes jornalistas, mortos sob tortura ou assassinados na lida são esquecidos.
 
A classe média, entendendo-se, aqui, a nossa minoritária classe média consolidada, continuou, em 2013, a ser a caixa de ressonância dessa grande mídia. Amou a quem ela amou, odiou a quem ela odiou, lapidou seus condenados.
 
Triste sina da classe-média brasileira, foi a grande protagonista de 2013, teve seu destino nas mãos. Mas no seu momento de maior poder, acostumada a ser guiada, não soube se autodeterminar.
 
Não teve líderes a lhe guiar, teve demagogos interesseiros. Não tinha uma causa a defender, apenas pequenos interesses e grandes mágoas.  Gritava de ressentimento, não de indignação.
 
E, no entanto, suas passeatas de junho foram o grande e inútil acontecimento político do ano. Em uma das muitas manifestações, vi um rapaz de ar apalermado, mas exultante, gritando em voz ritmada “vem pra rua”. Carregava um cartaz onde se lia, não a causa pela qual ele se manifestava, mas a frase “vem pra rua”. Ir para a rua era um fim em si mesmo. 
 
Pensei comigo: “Não, o Brasil não acordou, está nas ruas, mas abandonado à própria sorte, como um gigante sonâmbulo marchando entre o sonho, a consciência de si e o pesadelo. 
 
Um milhão e meio de pessoas que por algum motivo julgaram importante se juntarem em multidão, um fantástico capital político a espera de quem ponha a coroa na própria cabeça antes que um aventureiro o faça”.
 
O que restou das “grandes jornadas de junho”?  Após 10 anos de constante bombardeio midiático ácido ao governo, a classe-média estava intoxicada. Com o perdão da má palavra, e com dor no coração, mas me parece que tudo não passou de um “vómito cívico”.
 
Em setembro, essa classe-média já se recolhera ao seu ranger de dentes intramuros dos seus condomínios, shopping centers e escritórios. Assustada com a violência praticada por seus próprios filhos. Estes, vestidos de preto e portando pedras e coquetéis Molotov, arrebentavam vitrines e incendiavam as ruas. Imitavam, mais uma vez, o que viam nas telas dos seus computadores. 
 
Mas, igual a seus pais, sem uma causa a defender, buscavam, pelo uso da violência como forma de ação política, derrubar um sistema de poder imaginário. Passada a moda, voltaram para o Facebook.
 
A classe-média mostrou sua verdadeira cara, pouco depois. Na reação dos “Doutores CRMs” ao programa “Mais Médicos”. E lá estava, outra vez, a mesma mídia apoiando e repercutindo uma manifestação do mais puro preconceito. 
 
Ainda me causa mal estar a lembrança de um artigo de uma colunista da Folha de São Paulo, loira e muito bonita, por sinal, referindo-se aos médicos cubanos – escravos.
 
Os motivos eram tão mesquinhos que acabamos por assistir ao suicídio da imagem coletiva da medicina brasileira, quando, por fim, o programa “Mais Médicos” mostrou-se um sucesso. 
 
Sucesso que prescindiu, para acontecer, das nossas classes média e médica tão cientes e ciosas da sua própria importância.
 
Mas, por que nos surpreendemos ao ver mocinhas brancas, em jalecos brancos, usando termos de baixo calão? 
 
Já nos havia ensinado a professora Marilena Chauí: “A classe média é uma abominação política porque é fascista; é uma abominação ética porque é violenta; e é uma abominação cognitiva porque é ignorante”.
Acrescento eu: mesquinha.
 
E, então, chegamos ao último integrante do nosso triunvirato mesquinho – o Ministro Joaquim Barbosa. 
Desnecessário relembrar, por já muito discutida, a incoerência do juiz inflexível que pune corruptos com um rigor próximo ao da ira santa e adquire um apartamento em Miami usando de meios, digamos, não exatamente recomendáveis no recolhimento de impostos. 
 
Do homem que se quer vitorioso por méritos próprios, já que vindo das classes mais simples, mas que aprecia ser convidado para camarotes VIP.  Do intelectual douto nas letras de Goethe e que trata seus pares com a grosseria dos valentões de botequim ou de arquibancada. Do homem elegante em trajes importados e que nega cumprimento a uma senhora em um evento público. 
 
Do homem público endeusado pela mídia como um modelo para o Brasil e que persegue essa mesma mídia, ou quando lhe atira impropérios ou quando requer, em ofício, a demissão de um seu parente do serviço público ou quando serve de pano de fundo para a dentenção de jornalitas pátrios em terras estrangeiras. Do homem que representa a última esperança da nação na aplicação da justiça “justa e para todos” e que se dá ao uso de artimanhas, inovações e fatiamentos que, na opinião de grandes juristas, solapam o direito dos réus. 
 
O homem-juiz poderoso, inquestionável e dono da última palavra sobre a vida de um outro homem e incapaz de um gesto de solidariedade ao seu prisioneiro.
Quiseram-no por intrinsecamente mau, talvez não tenha magnitude para tanto – apenas mesquinho.
 
E, por isso mesmo, por tudo isso, esse personagem consegue sintetizar na sua figura a essência da nossa classe-média e da nossa grande mídia. Até porque parece manter com ambas uma relação que beira a simbiose.
 
E, chegando, então, até aqui, creio que acabei por achar a imagem que, no meu imaginário, representa o ano de 2013. O rosto sorridente do Ministro Joaquim Barbosa. É dele o rosto do ano.  De um ano mesquinho.

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