sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

BACHELET E A DERROTA DOS CHICAGO BOYS

Da coluna Isto É Independente, de Paulo Moreira Leite.




Por Marcelo Zero (*)


Em 28 de agosto de 1976, três semanas antes de ser assassinado em Washington pela DINA, a terrível polícia secreta de Pinochet, Orlando Letelier, que havia sido ministro da Defesa e das Relações Exteriores do governo Allende, publicou um artigo na prestigiada revista The Nation, que teve grande repercussão.

Nesse artigo, intitulado The Chicago Boys in Chile: Economics Freedom’s Awfull Toll, (“Os Chicago Boys no Chile: as Horríveis Consequências da Liberdade Econômica”), Letelier mostrou ao mundo as consequências econômicas, sociais e políticas da “terapia de choque’ que Milton Friedman e seus discípulos haviam imposto ao povo chileno.   

Entre outras coisas, Orlando Letelier assinalou, nesse texto, que “se, em 1972, apenas após um ano do governo da Unidade Popular, a renda da classe média e dos trabalhadores no Chile representavam 62,9% do total, em 1974 essa parcela da renda nacional chilena caiu para 38,2%. No entanto, se, em 1972, a renda dos grupos empresariais foi de 37,1% do total, dois anos mais tarde ela ascendeu a 61,8%. Em pouco mais de dois anos, a ditadura anos saqueou as classes pobres e médias do país”.

Foi exatamente isso. Um saqueio às classes populares do Chile. A brutal ditadura de Pinochet fez do Chile o primeiro experimento neoliberal, avant la lettre, do mundo. A brutalidade política das torturas e dos assassinatos combinou-se com a selvageria econômica da “terapia de choque.” Choque contra os assalariados e o trabalho, entenda-se. Sindicatos foram destruídos e salários e rendimentos foram esmagados. A recessão brutal da terapia de choque e da abertura econômica indiscriminada fez sumir do mapa muitos empregos, pequenas empresas e alguns setores econômicos. No Chile, além dos conhecidos desaparecidos políticos, houve também desaparecidos econômicos.

Assim, velhos generais e jovens economistas uniram-se para fazer do Chile o exemplo mais bem acabado de liberalismo econômico à outrance combinado com feroz ditadura política. Na realidade, uma coisa não funcionava sem a outra.

Friedman, seus discípulos e a grande imprensa, inclusive a dos EUA, tentavam dissociar o experimento neoliberal, a “terapia de choque”, das draconianas condições políticas sob as quais essa experiência se desenvolvia. Friedman dizia que a sua solução para os problemas econômicos do Chile era uma “solução técnica”, “racional”, que não tinha nenhuma relação política com a grotesca ditadura chilena.

Mas Orlando Letelier argumentava, no seu artigo seminal, exatamente o contrário.  Para ele, era evidente que “as políticas econômicas são introduzidas precisamente com a finalidade de alterar as estruturas sociais e impor um modelo político”. Assim, não se pode separar a política econômica dos seus requisitos para operar e de seus efeitos sociais e políticos. A “terapia de choque” não teria sobrevivido numa democracia. Pinochet, caso fosse presidente eleito, teria caído menos de um ano após assumir. E, por outro lado, a selvageria econômica foi fundamental para minar as bases socioeconômicas de uma possível resistência política à ditadura.

A principal consequência desse modelo econômico e político foi a geração de uma grande desigualdade num país que antes era, na América Latina, exemplo de desenvolvimento social. Uma desigualdade que se mostra renitente.

Com efeito, no início dos anos 70 do século passado, o índice de Gini do Chile era de 0,47, um dos mais baixos entre os países em desenvolvimento. Entretanto, com o liberalismo econômico selvagem introduzido na ditadura, esse índice subiu para espantosos 0,63, em meados da década de 1980. Naquela época, a pobreza e a indigência afetavam quase 45% da população chilena. Ressalte-se que, naquele tempo, o Chile já havia superado há muito a recessão causada pela “terapia de choque”.

Com a volta da democracia, nos anos 90, houve uma redução significativa da desigualdade, e o índice de Gini do Chile caiu para 0,51, em 1995.

Contudo, a desigualdade social no Chile parou de se reduzir, desde aquela época.

Na realidade, ao contrário do que vem acontecendo em outros países da América do Sul, como o Brasil, por exemplo, essa desigualdade vem aumentando paulatinamente. Hoje, o índice de Gini do Chile está oficialmente em 0,55, número superior ao verificado em meados da década de 1990. Contudo, simulações feitas com base em pesquisas fiscais, que levam em consideração a omissão na declaração dos rendimentos dos mais ricos, indicam que o índice de Gini real do Chile poderia estar em torno de 0,63, um número muito alto, inclusive em termos regionais. De acordo com relatório da OCDE, organização à qual o Chile pertence, esse país é o mais desigual entre os seus Estados Membros, superando outros países em desenvolvimento que também compõem a organização, como o México e a Turquia.

Assim sendo, a democracia chilena vem falhando na instauração de um processo sistemático e sustentado de redução das desigualdades sociais. Não é culpa da democracia em si, mas do fato de que transição democrática no Chile foi efetuada conservando, em linhas gerais, o modelo econômico herdado da ditadura. Um modelo que vem se mostrando, de forma crescente, incompatível com o aprofundamento da democracia chilena.

Em termos econômicos, o Chile continua governado pelo Chicago Boys, hoje bem velhinhos ou já mortos. Tão velhinhos e mortos como as experiências neoliberais que colapsaram no resto da América do Sul.

Pois bem, a presidenta Bachelet, em seu segundo mandato, tem plena consciência da necessidade enfrentar as desigualdades herdadas da ditadura chilena e de fundar um novo modelo econômico, social e político para um Chile mais inclusivo e justo.

Não será tarefa fácil. Até mesmo porque esse processo de aumento, ainda que paulatino, da desigualdade foi agravado pelo desinvestimento no Estado como agente de políticas sociais indispensáveis para assegurar proteção social e igualdade de oportunidades para todos os cidadãos.

Tal desinvestimento, iniciado na ditadura de Pinochet e muito aplaudido pelos conservadores, inclusive pelos conservadores brasileiros, afetou bastante dois setores extremamente importantes: a Previdência Social e a Educação.

No caso da Previdência, ela foi totalmente privatizada, num processo liderado pelo irmão do atual presidente Piñera.  Diziam, na época (1981), que o novo modelo, “moderno e racional”, asseguraria uma boa previdência social a todos os chilenos, sem sobrecarregar o Estado e os empresários. Inaugurou-se, assim, o único sistema de previdência do mundo sem contrapartida dos empregadores, e os fundos de pensões foram transferidos à iniciativa privada. Com o tempo, isso criou um gravíssimo problema social, pois a maioria da população não consegue ter hoje uma aposentadoria que lhe assegure o mínimo indispensável para uma sobrevivência digna. Metade da população está, na prática, fora do sistema. E os que estão dentro só conseguem se aposentar recebendo, em média, apenas cerca de 40% de seus salários na ativa, mesmo após 30 anos de contribuição.

Bachelet pretende recriar, nesse seu segundo mandato, um sistema previdenciário público que complemente os rendimentos dos aposentados do setor privado ou que dê uma aposentadoria a quem não tem condições de contribuir autonomamente.

Já o caso da Educação é o mais sensível politicamente. Em contraste com o que vem acontecendo em muitos países da América do Sul, como o Brasil, que está aumentando bastante o acesso ao ensino superior para estudantes pobres, no Chile a Educação de nível superior está cada vez mais elitizada. Naquele país, não há mais universidades públicas. Todas cobram taxas e mensalidades muito caras. Conforme a OCDE, a educação universitária chilena é, proporcionalmente ao PIB per capita, a mais cara do mundo. Essa crescente privatização e elitização do ensino superior está na origem das grandes manifestações de estudantes do Chile, que vêm ocorrendo há cerca de três anos.

Bachelet quer dar uma solução a esse grave problema, mediante uma grande reforma educacional, que assegure o acesso ao ensino superior a estudantes de todas as classes sociais.

Entretanto, para fazer essa grande reforma educacional e instituir um novo sistema público previdenciário, Bachelet terá de enfrentar outra herança da ditadura de Pinochet. Referimo-nos às inúmeras isenções e reduções fiscais asseguradas às empresas instaladas no Chile. Com a atual carga tributária daquele país (18% do PIB), somada às sempre presentes sonegações, o Chile não tem condições orçamentárias de dar uma resposta para a questão da Previdência, da Educação e da desigualdade social de um modo geral. O que os conservadores, inclusive os brasileiros, consideram uma grande vantagem, é, na realidade, um sério obstáculo ao aperfeiçoamento da democracia chilena.

Por isso, Bachelet já indicou que aumentará entre 25% e 30% a carga tributária de empresas chilenas para poder desenvolver seus imprescindíveis programas sociais.

Mas Bachelet não quer se desfazer da herança da ditadura chilena apenas no campo econômico e social. Não. A nova presidenta do Chile quer também se desfazer do entulho autoritário no campo político.

De fato, Bachelet está empenhada em reformar a constituição do Chile, promulgada em 1980, em plena ditadura de Pinochet, após um referendo fajuto. Essa Constituição criou um quadro eleitoral que dificulta muito a renovação do sistema político e institui um esquema partidário dual, que praticamente impede a representação das minorias. A nova presidenta do Chile, tal como a presidenta do Brasil, pretende promover uma substancial reforma política que permita a geração de um novo sistema político, mais transparente, democrático e representativo dos interesses de toda a sociedade. Como as manifestações do Chile querem.

Em síntese, o grande desafio de Bachelet é colocar o Chile em sintonia com os processos de redução da desigualdade que vêm ocorrendo em outros países da América do Sul e da América Latina e com as revindicações que emanam da juventude chilena.

Para isso, no entanto, Bachelet terá de remover ao menos parte do entulho paleoliberal deixado pelo Chicago Boys e do entulho autoritário herdado de Pinochet. A democracia chilena não poderá se aprofundar com essa pesada herança. Como alertou Letelier há 40 anos, as políticas econômicas criam modelos políticos. Políticas econômicas conservadoras, que já mostraram sua inviabilidade, tendem a criar sociedades excludentes e democracias limitadas.

O Chile, que ainda é um país com quadro social relativamente elevado para os padrões da nossa região, precisa reverter esse processo, sob pena de, no longo prazo, ficar para trás. E tal processo não poderá ser revertido pelo preço cadente do cobre no mercado mundial e pela jogada de marketing geopolítico da Aliança do Pacífico.

Já passou da hora do Chile mandar os Chicago Boys à Chicago.
(*) Marcelo Zero é formado em Ciências Sociais na Unb e assessor legislativo do Partido dos Trabalhadores
  

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